“O que está em jogo no Haiti é a dignidade de todo o povo ou a dependência servil” (1)
A entrevista que hoje começamos a publicar apareceu originalmente na revista “London Review of Books”, em fevereiro de 2007.
Apesar da data, ela é, até hoje, a mais extensa e mais reveladora entrevista do presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide.
O entrevistador não foi um jornalista, mas o filósofo canadense Peter Hallward – o que é visível na forma de suas perguntas, que mantivemos na íntegra – e realizada em Pretoria, África do Sul, onde Aristide encontra-se asilado desde o golpe de Estado patrocinado pelos EUA – e, em verdade, executado por tropas norte-americanas, que invadiram o Haiti em 2004.
Jean-Bertrand Aristide é a figura central da história do Haiti após o fim da alucinada ditadura dos Duvalier e seus tonton macoutes, como, de resto, da vida política atual do país. Se é lícito assim expressarmo-nos, sua ausência é a presença mais marcante da vida do país.
Jean-Bertrand Aristide é a figura central da história do Haiti após o fim da alucinada ditadura dos Duvalier e seus tonton macoutes, como, de resto, da vida política atual do país. Se é lícito assim expressarmo-nos, sua ausência é a presença mais marcante da vida do país.
Há seis anos, o retorno de Aristide é a principal questão política que mobiliza o povo haitiano.
Formado em filosofia e psicologia, Aristide foi um padre salesiano até 1988, quando sua adesão à Teologia da Libertação e ao lema “lapè nan tèt, lapè nan vant” (em créole: “não há paz na mente, se não há paz na barriga”) fez com que os superiores da ordem tornassem impossível sua permanência. Mas continuou um católico romano e adepto da não-violência no mesmo sentido de Gandhi.
Em 1990, candidato a presidente pela Frente Nacional pela Mudança e Democracia, foi eleito com 67% dos votos. Posteriormente, fundou o partido Fanmi Lavalas. Em créole, a palavra “fanmi” significa “família” e “lavalas” pode ser traduzido como “avalanche”, “dilúvio”, mas também “todos juntos”.
A história de Aristide após essa eleição é mais conhecida: o golpe de Estado em 1991, sua volta ao Haiti e à presidência, em 1994, e, depois do primeiro mandato de René Préval, sua vitória na eleição de 2000 com 92% dos votos e o golpe de Estado de 2004, com a invasão das tropas norte-americanas, a perseguição, inclusive assassinatos e torturas, dos partidários de Aristide e a subsequente proibição do Fanmi Lavalas de concorrer às eleições.
O fato é que a volta de Aristide ao Haiti é a condição política mais importante para que aquele país encontre, com a unidade de seu povo, a paz baseada na justiça. A situação atual, sobretudo depois do terremoto de janeiro, tornou mais urgente ainda que essa condição política seja cumprida.
C.L.
O Haiti é um país profundamente dividido e você tem sido sempre um personagem profundamente conflituoso. Para a maioria dos numerosos observadores simpatizantes dos anos 90 era fácil entender essa divisão mais ou menos em função de critérios de classe: você foi demonizado pelos ricos e idolatrado pelos pobres. Então, as coisas começaram a ficar mais complicadas. Certos ou errados, ao final da década, muitos dos que originalmente o apoiavam passaram a ficar mais céticos e seu segundo governo (2001 - 2004), do início ao fim, foi implacavelmente perseguido por acusações de violência e corrupção. Apesar de, em todas as medidas possíveis, você permanecer folgadamente como o político mais confiável e popular entre o eleitorado haitiano, parece que você tem perdido muito do apoio que gozava entre partes da classe política, dos trabalhadores, ativistas, intelectuais e outras, tanto no país como no exterior. Muitas de minhas questões referem-se a essas acusações, especialmente a de que, com o passar do tempo, você fez concessões ou abandonou muitos de seus ideais originais. Para começar, gostaria de retornarmos brevemente a um território familiar e perguntar sobre o processo que o conduziu ao poder em 1990.
Formado em filosofia e psicologia, Aristide foi um padre salesiano até 1988, quando sua adesão à Teologia da Libertação e ao lema “lapè nan tèt, lapè nan vant” (em créole: “não há paz na mente, se não há paz na barriga”) fez com que os superiores da ordem tornassem impossível sua permanência. Mas continuou um católico romano e adepto da não-violência no mesmo sentido de Gandhi.
Em 1990, candidato a presidente pela Frente Nacional pela Mudança e Democracia, foi eleito com 67% dos votos. Posteriormente, fundou o partido Fanmi Lavalas. Em créole, a palavra “fanmi” significa “família” e “lavalas” pode ser traduzido como “avalanche”, “dilúvio”, mas também “todos juntos”.
A história de Aristide após essa eleição é mais conhecida: o golpe de Estado em 1991, sua volta ao Haiti e à presidência, em 1994, e, depois do primeiro mandato de René Préval, sua vitória na eleição de 2000 com 92% dos votos e o golpe de Estado de 2004, com a invasão das tropas norte-americanas, a perseguição, inclusive assassinatos e torturas, dos partidários de Aristide e a subsequente proibição do Fanmi Lavalas de concorrer às eleições.
O fato é que a volta de Aristide ao Haiti é a condição política mais importante para que aquele país encontre, com a unidade de seu povo, a paz baseada na justiça. A situação atual, sobretudo depois do terremoto de janeiro, tornou mais urgente ainda que essa condição política seja cumprida.
C.L.
O Haiti é um país profundamente dividido e você tem sido sempre um personagem profundamente conflituoso. Para a maioria dos numerosos observadores simpatizantes dos anos 90 era fácil entender essa divisão mais ou menos em função de critérios de classe: você foi demonizado pelos ricos e idolatrado pelos pobres. Então, as coisas começaram a ficar mais complicadas. Certos ou errados, ao final da década, muitos dos que originalmente o apoiavam passaram a ficar mais céticos e seu segundo governo (2001 - 2004), do início ao fim, foi implacavelmente perseguido por acusações de violência e corrupção. Apesar de, em todas as medidas possíveis, você permanecer folgadamente como o político mais confiável e popular entre o eleitorado haitiano, parece que você tem perdido muito do apoio que gozava entre partes da classe política, dos trabalhadores, ativistas, intelectuais e outras, tanto no país como no exterior. Muitas de minhas questões referem-se a essas acusações, especialmente a de que, com o passar do tempo, você fez concessões ou abandonou muitos de seus ideais originais. Para começar, gostaria de retornarmos brevemente a um território familiar e perguntar sobre o processo que o conduziu ao poder em 1990.
O final dos anos 80 foi um período muito reacionário na política mundial, especialmente na América Latina. Como você explica a considerável força e resistência do movimento popular contra a ditadura no Haiti, movimento que passou a ser conhecido como “Lavalas” – palavra que em creóle significa “inundação”, ou “avalanche”, assim como “multidão”, ou “todos juntos”? Como você explica que, apesar das circunstâncias, e certamente contra os interesses dos EUA, dos militares e de todo o poder que dominava o Haiti, você conseguiu vencer as eleições de 1990?
Jean-Bertrand Aristide - Grande parte do trabalho já tinha sido feito por pessoas antes de mim. Refiro-me a pessoas como o padre Antonio Adrien e seus companheiros, e Padre Jean Marie Vincent, que foi assassinado em 1994. Eles haviam desenvolvido uma visão teológica progressista que refletia as esperanças e expectativas do povo haitiano. Já em 1979, eu estava trabalhando no contexto da Teologia da Libertação. Há uma frase em particular que ficou marcada em minha mente e que pode ajudar a resumir meu entendimento da situação naquela época. Você deve lembrar-se de que a Conferência de Puebla aconteceu no México, em 1979, e naquele tempo muitos teólogos da libertação estavam trabalhando sob severas restrições, ameaçados e impedidos de participar. O slogan ao qual estou me referindo dizia algo como “si el pueblo no va a Puebla, Puebla se quedara sin pueblo” – se o povo não vai a Puebla, Puebla ficará sem povo.
Em outras palavras, o povo é para mim o próprio centro de nossa luta. Não se trata de lutar pelo povo, em nome do povo, à distância do povo; é o povo, ele mesmo, que está lutando. Trata-se de lutar com o povo e no meio do povo. Isso leva a um segundo princípio teológico, que Sobrinho, Boff e outros entenderam muito bem. A teologia da libertação somente pode ser uma etapa de um processo mais abrangente. Esta etapa, na qual nós temos que começar falando em nome dos pobres e oprimidos, tem fim assim que eles comecem a falar com sua própria voz e com suas próprias palavras. O povo começa a assumir seu próprio lugar na cena pública. A teologia da libertação dá lugar, então, à libertação da teologia. O processo completo leva-nos longe do paternalismo, de toda noção de um “saber” que poderia vir a conduzir o povo e resolver seus problemas. Os padres que eram inspirados pela teologia da libertação naquele tempo entendiam que nosso papel era acompanhar o povo, e não tomar o lugar dele.
No Haiti, a emergência do povo como força pública organizada, como consciência coletiva já tinha começado nos anos oitenta, e, por volta de 1986, essa força era forte o suficiente para afastar a ditadura Duvalier do poder. Foi um movimento da base popular, e não um projeto piramidal, dirigido por um único líder ou uma só organização. Também não foi apenas um movimento político. Ele tomou forma, sobretudo através da construção de numerosas pequenas comunidades eclesiais de base, ou “ti legliz”, por todo o país. Foram essas comunidades que desempenharam um papel histórico decisivo. Quando fui eleito presidente, não se tratava somente de um cargo estritamente político, da eleição de um político, de um partido político convencional. Não! Tratava-se da expressão de um grande movimento popular, da mobilização do povo como um todo. Pela primeira vez o Palácio Nacional tornou-se um lugar não só de políticos profissionais, mas para o povo, ele mesmo. O simples fato de permitir-se a pessoas comuns entrarem no palácio, o simples fato de serem bem vindas pessoas das camadas mais pobres da sociedade haitiana no coração central do poder tradicional – isto já foi um gesto profundamente transformador.
Você hesitou por algum tempo antes de aceitar colocar-se como candidato naquelas eleições de 1990. Você estava perfeitamente consciente de como, considerando-se as relações das forças existentes, a participação nas eleições poderia enfraquecer ou dividir o movimento. Olhando para trás agora, você ainda pensa que foi a coisa certa a fazer? Haveria alguma alternativa viável àquela de seguir a via parlamentar?
Aristide - Eu sou inclinado a pensar a história como um processo de cristalização de diferentes tipos de variáveis. Algumas delas são conhecidas, outras não. As variáveis que nós conhecíamos e entendíamos naquele tempo eram bastante claras. Nós tínhamos uma idéia do que éramos capazes e também sabíamos que aqueles que buscavam manter o status quo tinham inúmeros meios à disposição. Eles tinham toda sorte de estratégias e mecanismos – militares, econômicos, políticos... – para desorganizar qualquer movimento que desafiasse sua continuidade no poder. Mas nós não podíamos saber exatamente como eles se serviriam destes meios. Eles mesmos não poderiam saber. Estavam acompanhando atentamente a forma como o povo lutava para inventar modos de organizar a si mesmo, modos de promover efetivamente este desafio. Isso é o que eu penso acerca de variáveis desconhecidas: o movimento popular estava em processo de ser inventado e desenvolvido, sob pressão, no campo de batalha, e não havia meios de saber de antemão que contra-ataque eles iriam provocar.
Agora, dado o equilíbrio desses dois tipos de variáveis, eu não podia voltar atrás. Não recuei em nada. Em 1990, fui convocado por outros no movimento a aceitar a cruz que tinha caído sobre mim. Foi nesses termos que o Padre Adrien descreveu isso e foi assim que eu entendi: eu deveria aceitar o fardo daquela cruz. “Você está no caminho do Calvário”, ele disse, e eu sabia que ele estava certo. Quando recusei isso, no início, Monsenhor Willy Romélus, em quem eu depositava muita confiança, como conselheiro, insistiu que eu não tinha escolha. “Sua vida não pertence mais a você”, ele disse, “Você a ofereceu em sacrifício ao povo. E agora que uma missão concreta se apresenta a você, agora que você se encontra frente a essa convocação especial, de seguir Jesus e carregar sua cruz, reflita cuidadosamente antes de voltar atrás”. Isto era o que eu sabia, e sabia muito bem, então. Foi uma espécie de caminho do Calvário. E assim que decidi, aceitei este caminho tal como ele seria, sem ilusões, sem enganar-me a mim mesmo. Nós sabíamos perfeitamente bem que não seríamos capazes de mudar tudo, que não seríamos capazes de corrigir cada injustiça, que iríamos trabalhar sob severas restrições, e assim por diante.
Suponha que eu dissesse não, que não aceitasse ser candidato, como as pessoas iriam reagir? Entendo agora o eco de certas vozes que perguntavam: “Vamos ver agora se você tem a coragem de tomar essa decisão. Vamos ver agora se você não passa de um covarde para aceitar essa tarefa. Você, que tem proferido os mais belos sermões, o que vai fazer agora? Vai nos abandonar, ou vai assumir essa responsabilidade de modo que juntos possamos seguir em frente?” E eu pensei sobre isso. Qual a melhor maneira de colocar em prática a mensagem do evangelho? O que eu deveria fazer? Eu lembro como respondi a essa questão, quando, alguns dias antes da eleição de 1990, fui a uma manifestação pelas vítimas do massacre da Viela de Vaillant, no qual vinte pessoas foram mortas pelos Macoutes, no dia das eleições canceladas de 1987. Um estudante me perguntou: “Padre, o senhor pensa que poderá mudar sozinho essa situação tão corrupta e injusta?” E eu, em resposta, disse-lhe: “Para chover, é necessária uma, ou muitas gotas de chuva? Para uma inundação, basta um fiozinho de água, ou a torrente de um rio?” E eu agradeci a ele por me dar a chance de apresentar nossa missão coletiva na forma dessa metáfora: não será sozinhos, como gotas de chuva, que você e eu conseguiremos mudar essa situação, mas juntos, como uma inundação ou uma torrente, “lavalassement”, que iremos transformá-la, saná-la, sem ilusão de que isso será fácil ou rápido.
Então, haveria alternativas? Acho que não. No entanto, estou seguro de que havia uma oportunidade histórica, e de que nós demos uma resposta histórica, uma resposta que transformou a situação, um passo na direção certa. Naturalmente, fazendo isso, provocamos uma reação. Nossos oponentes responderam com um golpe de estado. Primeiro, a tentativa de golpe de estado de Roger Lafontant, em janeiro de 1991, e, como ele falhou, o golpe de 30 de setembro de 1991. Nossos oponentes tinham sempre meios desproporcionalmente poderosos de reprimir o movimento popular. Nenhuma simples ação ou decisão poderia mudar isso. O que importa é que nós tínhamos dado um passo adiante, um passo na direção certa, seguido de outros passos. O processo que começou naquele época ainda é forte, apesar de tudo, ainda é forte, e eu estou convencido de que ele virá somente a se fortalecer, e que, no fim, ele irá prevalecer.
O golpe de setembro de 1991 aconteceu apesar do fato de as políticas concretas que você aplicou, quando estava no poder, terem sido muito moderadas, muito prudentes. Teria sido um golpe inevitável, então? Apesar do que você fez ou não fez, bastaria que a simples presença de alguém como você no Palácio Presidencial fosse inaceitável para a elite haitiana? E, neste caso, o que mais poderia ser possível fazer para prever e resistir aos violentos contra-ataques?
Aristide - Bom, essa é uma boa questão. Eu entendo a situação do seguinte modo: o que aconteceu em setembro de 1991 aconteceu também em fevereiro de 2004 e poderia facilmente ocorrer novamente no futuro, sempre que a oligarquia que controla os meios de repressão venha a empregá-los para manter uma versão oca de democracia. Essa é sua obsessão: manter uma situação que poderia ser chamada de democrática, mas que, de fato, consiste em uma democracia importada e superficial, controlada de cima para baixo. Eles têm sido capazes de manter essa situação por um longo tempo. O Haiti é independente há 200 anos, mas nós agora vivemos num país onde um por cento da população controla mais que a metade da riqueza. Para a elite, trata-se de estarmos nós contra eles, de procurar um modo de preservar as desigualdades massivas que afetam cada faceta da sociedade haitiana. Nós estamos submetidos a uma espécie de apartheid. Mesmo depois de 1804, a elite tem feito o possível para manter as massas à margem, no outro lado dos muros que protegem seus privilégios. É a isso que nós somos contra. É a isso que qualquer democracia genuína é contra. A elite fará tudo que puder para certificar-se de que controla um presidente fantoche, que controla um parlamento fantoche. Ela fará o que for preciso para proteger o sistema de exploração do qual seu poder depende. A sua questão deve ser colocada em relação a esse contexto histórico, em relação a essa profunda e considerável permanência.
Continua na próxima edição.http://www.horadopovo.com.br/
Jean-Bertrand Aristide - Grande parte do trabalho já tinha sido feito por pessoas antes de mim. Refiro-me a pessoas como o padre Antonio Adrien e seus companheiros, e Padre Jean Marie Vincent, que foi assassinado em 1994. Eles haviam desenvolvido uma visão teológica progressista que refletia as esperanças e expectativas do povo haitiano. Já em 1979, eu estava trabalhando no contexto da Teologia da Libertação. Há uma frase em particular que ficou marcada em minha mente e que pode ajudar a resumir meu entendimento da situação naquela época. Você deve lembrar-se de que a Conferência de Puebla aconteceu no México, em 1979, e naquele tempo muitos teólogos da libertação estavam trabalhando sob severas restrições, ameaçados e impedidos de participar. O slogan ao qual estou me referindo dizia algo como “si el pueblo no va a Puebla, Puebla se quedara sin pueblo” – se o povo não vai a Puebla, Puebla ficará sem povo.
Em outras palavras, o povo é para mim o próprio centro de nossa luta. Não se trata de lutar pelo povo, em nome do povo, à distância do povo; é o povo, ele mesmo, que está lutando. Trata-se de lutar com o povo e no meio do povo. Isso leva a um segundo princípio teológico, que Sobrinho, Boff e outros entenderam muito bem. A teologia da libertação somente pode ser uma etapa de um processo mais abrangente. Esta etapa, na qual nós temos que começar falando em nome dos pobres e oprimidos, tem fim assim que eles comecem a falar com sua própria voz e com suas próprias palavras. O povo começa a assumir seu próprio lugar na cena pública. A teologia da libertação dá lugar, então, à libertação da teologia. O processo completo leva-nos longe do paternalismo, de toda noção de um “saber” que poderia vir a conduzir o povo e resolver seus problemas. Os padres que eram inspirados pela teologia da libertação naquele tempo entendiam que nosso papel era acompanhar o povo, e não tomar o lugar dele.
No Haiti, a emergência do povo como força pública organizada, como consciência coletiva já tinha começado nos anos oitenta, e, por volta de 1986, essa força era forte o suficiente para afastar a ditadura Duvalier do poder. Foi um movimento da base popular, e não um projeto piramidal, dirigido por um único líder ou uma só organização. Também não foi apenas um movimento político. Ele tomou forma, sobretudo através da construção de numerosas pequenas comunidades eclesiais de base, ou “ti legliz”, por todo o país. Foram essas comunidades que desempenharam um papel histórico decisivo. Quando fui eleito presidente, não se tratava somente de um cargo estritamente político, da eleição de um político, de um partido político convencional. Não! Tratava-se da expressão de um grande movimento popular, da mobilização do povo como um todo. Pela primeira vez o Palácio Nacional tornou-se um lugar não só de políticos profissionais, mas para o povo, ele mesmo. O simples fato de permitir-se a pessoas comuns entrarem no palácio, o simples fato de serem bem vindas pessoas das camadas mais pobres da sociedade haitiana no coração central do poder tradicional – isto já foi um gesto profundamente transformador.
Você hesitou por algum tempo antes de aceitar colocar-se como candidato naquelas eleições de 1990. Você estava perfeitamente consciente de como, considerando-se as relações das forças existentes, a participação nas eleições poderia enfraquecer ou dividir o movimento. Olhando para trás agora, você ainda pensa que foi a coisa certa a fazer? Haveria alguma alternativa viável àquela de seguir a via parlamentar?
Aristide - Eu sou inclinado a pensar a história como um processo de cristalização de diferentes tipos de variáveis. Algumas delas são conhecidas, outras não. As variáveis que nós conhecíamos e entendíamos naquele tempo eram bastante claras. Nós tínhamos uma idéia do que éramos capazes e também sabíamos que aqueles que buscavam manter o status quo tinham inúmeros meios à disposição. Eles tinham toda sorte de estratégias e mecanismos – militares, econômicos, políticos... – para desorganizar qualquer movimento que desafiasse sua continuidade no poder. Mas nós não podíamos saber exatamente como eles se serviriam destes meios. Eles mesmos não poderiam saber. Estavam acompanhando atentamente a forma como o povo lutava para inventar modos de organizar a si mesmo, modos de promover efetivamente este desafio. Isso é o que eu penso acerca de variáveis desconhecidas: o movimento popular estava em processo de ser inventado e desenvolvido, sob pressão, no campo de batalha, e não havia meios de saber de antemão que contra-ataque eles iriam provocar.
Agora, dado o equilíbrio desses dois tipos de variáveis, eu não podia voltar atrás. Não recuei em nada. Em 1990, fui convocado por outros no movimento a aceitar a cruz que tinha caído sobre mim. Foi nesses termos que o Padre Adrien descreveu isso e foi assim que eu entendi: eu deveria aceitar o fardo daquela cruz. “Você está no caminho do Calvário”, ele disse, e eu sabia que ele estava certo. Quando recusei isso, no início, Monsenhor Willy Romélus, em quem eu depositava muita confiança, como conselheiro, insistiu que eu não tinha escolha. “Sua vida não pertence mais a você”, ele disse, “Você a ofereceu em sacrifício ao povo. E agora que uma missão concreta se apresenta a você, agora que você se encontra frente a essa convocação especial, de seguir Jesus e carregar sua cruz, reflita cuidadosamente antes de voltar atrás”. Isto era o que eu sabia, e sabia muito bem, então. Foi uma espécie de caminho do Calvário. E assim que decidi, aceitei este caminho tal como ele seria, sem ilusões, sem enganar-me a mim mesmo. Nós sabíamos perfeitamente bem que não seríamos capazes de mudar tudo, que não seríamos capazes de corrigir cada injustiça, que iríamos trabalhar sob severas restrições, e assim por diante.
Suponha que eu dissesse não, que não aceitasse ser candidato, como as pessoas iriam reagir? Entendo agora o eco de certas vozes que perguntavam: “Vamos ver agora se você tem a coragem de tomar essa decisão. Vamos ver agora se você não passa de um covarde para aceitar essa tarefa. Você, que tem proferido os mais belos sermões, o que vai fazer agora? Vai nos abandonar, ou vai assumir essa responsabilidade de modo que juntos possamos seguir em frente?” E eu pensei sobre isso. Qual a melhor maneira de colocar em prática a mensagem do evangelho? O que eu deveria fazer? Eu lembro como respondi a essa questão, quando, alguns dias antes da eleição de 1990, fui a uma manifestação pelas vítimas do massacre da Viela de Vaillant, no qual vinte pessoas foram mortas pelos Macoutes, no dia das eleições canceladas de 1987. Um estudante me perguntou: “Padre, o senhor pensa que poderá mudar sozinho essa situação tão corrupta e injusta?” E eu, em resposta, disse-lhe: “Para chover, é necessária uma, ou muitas gotas de chuva? Para uma inundação, basta um fiozinho de água, ou a torrente de um rio?” E eu agradeci a ele por me dar a chance de apresentar nossa missão coletiva na forma dessa metáfora: não será sozinhos, como gotas de chuva, que você e eu conseguiremos mudar essa situação, mas juntos, como uma inundação ou uma torrente, “lavalassement”, que iremos transformá-la, saná-la, sem ilusão de que isso será fácil ou rápido.
Então, haveria alternativas? Acho que não. No entanto, estou seguro de que havia uma oportunidade histórica, e de que nós demos uma resposta histórica, uma resposta que transformou a situação, um passo na direção certa. Naturalmente, fazendo isso, provocamos uma reação. Nossos oponentes responderam com um golpe de estado. Primeiro, a tentativa de golpe de estado de Roger Lafontant, em janeiro de 1991, e, como ele falhou, o golpe de 30 de setembro de 1991. Nossos oponentes tinham sempre meios desproporcionalmente poderosos de reprimir o movimento popular. Nenhuma simples ação ou decisão poderia mudar isso. O que importa é que nós tínhamos dado um passo adiante, um passo na direção certa, seguido de outros passos. O processo que começou naquele época ainda é forte, apesar de tudo, ainda é forte, e eu estou convencido de que ele virá somente a se fortalecer, e que, no fim, ele irá prevalecer.
O golpe de setembro de 1991 aconteceu apesar do fato de as políticas concretas que você aplicou, quando estava no poder, terem sido muito moderadas, muito prudentes. Teria sido um golpe inevitável, então? Apesar do que você fez ou não fez, bastaria que a simples presença de alguém como você no Palácio Presidencial fosse inaceitável para a elite haitiana? E, neste caso, o que mais poderia ser possível fazer para prever e resistir aos violentos contra-ataques?
Aristide - Bom, essa é uma boa questão. Eu entendo a situação do seguinte modo: o que aconteceu em setembro de 1991 aconteceu também em fevereiro de 2004 e poderia facilmente ocorrer novamente no futuro, sempre que a oligarquia que controla os meios de repressão venha a empregá-los para manter uma versão oca de democracia. Essa é sua obsessão: manter uma situação que poderia ser chamada de democrática, mas que, de fato, consiste em uma democracia importada e superficial, controlada de cima para baixo. Eles têm sido capazes de manter essa situação por um longo tempo. O Haiti é independente há 200 anos, mas nós agora vivemos num país onde um por cento da população controla mais que a metade da riqueza. Para a elite, trata-se de estarmos nós contra eles, de procurar um modo de preservar as desigualdades massivas que afetam cada faceta da sociedade haitiana. Nós estamos submetidos a uma espécie de apartheid. Mesmo depois de 1804, a elite tem feito o possível para manter as massas à margem, no outro lado dos muros que protegem seus privilégios. É a isso que nós somos contra. É a isso que qualquer democracia genuína é contra. A elite fará tudo que puder para certificar-se de que controla um presidente fantoche, que controla um parlamento fantoche. Ela fará o que for preciso para proteger o sistema de exploração do qual seu poder depende. A sua questão deve ser colocada em relação a esse contexto histórico, em relação a essa profunda e considerável permanência.
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